Coluna Álvaro Machado Dias na Folha de São Paulo
Ansiedade dá o tom para a vida mental no país
Declínio da interação com desconhecidos antecede a polarização e cria as bases para a propagação do ódio.
O Brasil figura como o país mais ansioso do mundo no último grande mapeamento global dos transtornos mentais, anterior à pandemia, sendo que nestes dois últimos anos a situação só se agravou.
Conforme o G1 reportou em 2020, “o Ministério da Saúde vem conduzindo uma pesquisa para avaliar a saúde mental dos brasileiros […]. Mais de 17 mil pessoas, em todo o Brasil, participaram do estudo. O resultado mais alarmante: 86,5% dos entrevistados estavam enquadrados em algum tipo de ansiedade patológica”.
A ansiedade é uma reação defensiva usada para manifestar a expectativa de sofrimento iminente. Ela possui diferentes formas, sendo a mais comum a geral (transtorno de ansiedade generalizada ou TAG), em que as preocupações se multiplicam e o nervosismo impera. Apesar dos casos mais severos estarem relacionados à expressão de variantes genéticas no cérebro, a ansiedade é sobretudo um mal cultural, com características locais, dentro de uma tradição de sofrimentos mentais orientados ao futuro.
Antes da sua descoberta —ou invenção, como dizem os foucaultianos— Kierkegaard (1844) descreveu um medo existencial ou angústia, pouco ligado a causas específicas, que emerge da consciência da nossa existência fugaz.
Jean Paul Richter (1827), por sua vez, cunhou o termo “weltschmerz” (a dor do mundo), que surge da percepção de que existe um descompasso entre a maneira como as coisas são e como deveriam ser —um senso de alienação, portanto—, também tratado como o encontro do tédio com a desesperança, à luz da falta de sentido de se investir em crenças, esforços e paixões (“ennui“).
O CARÁTER INTERPESSOAL DA ANSIEDADE NACIONAL
A alta prevalência da ansiedade faz dela uma espécie de normalidade patológica. O senso de que coisas ruins podem acontecer a qualquer momento é como a “weltschmerz” ou a “ennui”, condições existenciais que sintonizam o sujeito ao ambiente pouco acolhedor. Ela gera desconfiança, a qual estimula a criação de justificativas externalizantes, que muitas vezes flertam com a paranoia.
O Brasil ocupa o último lugar em confiança interpessoal na América Latina, região em que a mesma atinge um dos piores níveis do mundo (Latinobarómetro, 2020). Noventa e cinco por cento dos brasileiros declaram que, ao lidar com desconhecidos, todo cuidado é pouco.
Isto tanto se relaciona à violência generalizada quanto a fenômenos mais sutis, ligados à representação ética e empática do outro, que persistem mesmo quando o risco à integridade física é afastado. A percepção dominante no país é que desconhecidos representam perigo.
Engana-se quem assume que o mal-estar aflora, primariamente, da falta de credibilidade institucional. Esta não é muito mais baixa no Brasil que no resto do subcontinente, ao contrário da interpessoal, só igualada pela Venezuela.
A comparação com a Argentina é ilustrativa. Enquanto a perspectiva de que devemos confiar na maioria das pessoas é mais de três vezes menor por aqui que por lá (5% vs. 16%), a confiança que depositamos nos três Poderes é bem maior: Executivo (10% vs. 6%), Legislativo (5% vs. 2%) e Judiciário (11% vs. 1%).
Outras instituições geram resultados sortidos. Por exemplo, os brasileiros confiam muito mais nas igrejas (43% vs. 12%), ao passo que os argentinos confiam um pouco mais na polícia (5% vs. 6%) e muito mais na saúde pública do seu país (18% vs. 34%).
A desconfiança soma-se a outros fatores ansiogênicos, como o desemprego e criminalidade. A resultante surge como abertura diminuída à construção de laços interpessoais no mundo físico, o que estimula os brasileiros de todas as idades a se relacionarem mais pelas redes sociais, e os mais jovens a fazê-lo também por meio de jogos online. Esse é um fator-chave para a compreensão do nosso lugar de destaque mundial no uso desses canais.
Redes sociais e jogos aumentam o senso de conexão, mitigando o isolamento social, ao mesmo tempo que reforçam sentimentos negativos e minam as relações presenciais, ao condicionar as pessoas a checarem o celular o tempo inteiro (“phubbing”). Um estudo recente mostrou que “uma semana sem redes sociais leva a melhoras significativas no bem-estar, reduzindo a ansiedade”. As redes não são intrinsecamente nocivas; o problema é o seu uso imoderado.
Acontece que o ódio digital e as fake news atingiram níveis sem precedentes no Brasil e o universo dos jogos digitais seguiu por via semelhante. Assim, seria equivocado pressupor que a crescente digitalização da sociabilidade se contrapõe ao mal-estar presencial; na realidade, tende a ser o contrário, mesmo para quem não passa o dia no Twitter.
EXPERIÊNCIAS INTERPESSOAIS: RESULTADOS INÉDITOS DE UM AMPLO ESTUDO NACIONAL
Existe uma relação direta entre percepção de acolhimento e disposição para se expor. Situações ameaçadoras nos induzem a agir como se estivéssemos encenando o comportamento. O resultado é a criação de um fosso entre a manifestação pública do eu e a íntima, o que deprime nosso senso de integridade, dando-nos a sensação de que não somos suficientemente genuínos. Isso explica por que a socialização receosa costuma estar associada a experiências problemáticas do genuíno na clínica das ansiedades.
Apesar dessas serem perspectivas muito bem-estabelecidas, é incerto (1) o quanto as redes de relacionamento interpessoal são empobrecidas no país, (2) o quanto a nossa população sente que existe uma cisão entre persona pública e privada e (3) como as pessoas se sentem em relação àqueles que não conhecem. Esclarecer esses pontos é fundamental para a tese apresentada aqui.
Durante os meses de agosto e setembro deste ano, a equipe do Instituto Locomotiva conduziu um experimento inédito, cujos resultados apresento em primeira mão nesta seção. O estudo envolveu 1.682 participantes do Brasil todo, divididos em cotas sociodemográficas que espelham o perfil da população brasileira. A aplicação, de natureza interativa, se deu por meio da nossa plataforma de experimentos digitais.
Vinte e três por cento dos participantes declararam ter uma rede de relacionamentos presenciais completamente empobrecida (“ninguém”), e 44% disseram ter redes pequenas, fundamentalmente formadas por alguns parentes e poucos amigos.
Dois terços disseram se portar de maneira diferente com desconhecidos, revelando uma forte cisão entre persona pública e privada na população brasileira, a qual é particularmente intensa entre as pessoas que declaram ter redes empobrecidas de relacionamento.
No grupo das pessoas que identificam diferenças entre a sua persona pública e a privada (66% da amostra), 42% dizem sentir extremo desconforto ao falar com estranhos, em consonância com a tese apresentada sobre a natureza ansiogênica da nossa interpessoalidade. Nesse subgrupo, a qualidade do diálogo com quem se tem intimidade é percebida como 360% melhor.
INTERPESSOALIDADE ANSIOGÊNICA SUBSIDIA A POLARIZAÇÃO
Uma pergunta vem dominando as conversas, nos mais variados círculos intelectuais: como fazer para que voltemos a dialogar? Os debates que seguem partem das premissas de que (1) a polarização é a derradeira causa do declínio das trocas interpessoais e que (2) a sua mitigação é suficiente para a retomada. Eu discordo destes entendimentos.
O declínio da interpessoalidade é fator causal antecedente, acompanhando a progressiva conversão da ansiedade em normalidade patológica, muito em função da crença de que o outro não é íntegro, com ou sem tensão política ou risco de violência, ou melhor, pelo lento acúmulo desses dissabores e diversos outros.
A ordem dos fatores surge invertida na fala de quem caracteriza a quebra do contrato social estritamente por meio da polarização, e isso explica porque as teses emergentes nunca ultrapassam os limites do óbvio. Em contraste, os dados da OMS, Latinobarómetro, Locomotiva e outros indicam que o jeito de ser do brasileiro vem sendo moldado ao longo de décadas pela percepção de que coisas ruins tendem a acontecer no trato com o outro.
A ansiedade diluída no ambiente social é a enzima que corrói a empatia, criando as bases para que o ódio se propague entre as fissuras que se formam. A polarização é causa próxima e não última do mal-estar.
É evidente que a derradeira matriz dos silos interpessoais brasileiros é a desigualdade profunda, cujas fronteiras internas de renda em parte se sobrepõem às raciais. Também é óbvio que o rechaço dos mais ricos às trocar interpessoais tende a ter um viés ligado às oportunidades percebidas, cada vez mais bem-definidas por aparatos culturais, sobretudo tecnológicos, assim como é verdade que os solteiros investem menos em conhecer pessoas novas nos bares porque sabem que podem ir direto ao ponto usando um aplicativo e assim o fazem muitos outros grupos.
Porém, retroagir às bases estruturais das divisões intergrupais ou, opostamente, prender-se às mudanças de comportamento no interior de grupos de interesse é perder de vista o fenômeno em curso, que é o declínio generalizado das trocas empáticas que acompanha a evolução de uma forma específica de mal-estar, de maneira nada casual, gerando efeitos transversais.
Um contraste comumente exaltado pelos visitantes europeus ou americanos que chegavam ao Brasil no passado era a nossa disposição singular para interagir com desconhecidos. É esse diferencial cultural (meio folclórico) que entrou em declínio, sinalizando algo maior.
A baixa disponibilidade para trocas intersubjetivas com desconhecidos reduz o retorno médio do comportamento, ao torná-lo dependente do resultado prático obtido.
Por exemplo, imagine que você precisou marcar uma consulta médica de urgência, o que lhe fez gastar duas horas no consultório à espera de um encaixe. Passada a situação, o balanço será muito diferente se você tiver engatado uma conversa com alguém ou se tiver dedicado todo o seu tempo a mexer no celular. Isso acontece porque a conexão com outra pessoa é em si produtora de bem-estar, especialmente quando conseguimos contornar a carapaça ansiogênica da persona pública.
A percepção de que a polarização é o derradeiro leitmotiv da nossa falta de diálogo é a constatação de que alguns pensarão “melhor não, vai que ele bate panela na frente de quartel”, enquanto outros pensarão “melhor não, vai que ela apoia a volta da corrupção”. Essa é uma visão que pressupõe que o país surgiu das jornadas de Junho de 2013 e que vai de Ipanema aos Jardins.
Em contraste, mesmo em estados em que existe forte alinhamento político (como a Bahia, onde Lula venceu o segundo turno com 72% dos votos), o clima de ruptura transversal impera, em consonância com o avanço da sensação de que o desconhecido, a princípio, não presta.
A reconstrução do tecido social brasileiro, circunscrita por limites socioeconômicos, depende de um grande esforço para a mitigação da ansiedade como normalidade patológica. As ações necessárias não têm implementação trivial nem se resumem a uma só área.
Porém, você pode fazer a sua parte, agindo de maneira mais aberta e menos pragmática em relação ao outro. Cada gesto positivo orientado a um estranho reduz em um pouquinho a animosidade geral. O retorno esperado é fenomenal: “Pessoas felizes dedicam mais tempo a falar com os outros e, quanto mais diálogos têm, mais felizes elas se sentem” (Sandstrom e Boothby, 2021, p. 48).