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Coisas que todo mundo conhece, mas que não existem

Liderança é uma dessas ideias sobre a qual todo mundo fala, mas que possui realidade ontológica vazia.

Coisas que todo mundo conhece, mas que não existem

As pessoas andam. E quando querem chamar a ação por um nome, dizem andança.

Nas andanças, sempre alguém lidera. E quando querem chamar isso por um nome, dizem liderança. Ninguém fala que, para perder a barriga e ganhar uns anos de vida, o Sampaio precisa ter mais andança, mas todo mundo concorda que para controlar a sanha dos filhos e fazer uma sucessão decente, precisa ter mais liderança.

Difícil dizer quando essa ideia de que liderança é uma coisa em si tornou-se hegemônica e quanto tempo isso durará, mas é estranho.

Há consequências. Tudo aquilo que se basta no mundo, ao invés de simplesmente surgir e desaparecer em função de ações num contexto, possui uma essência que pode ser descrita. E uma vez que isso é feito, torna-se viável enunciar o que separa o comportamento normal, dos preceitos excepcionais que se abrigam em tal núcleo.

É aí que o problema surge. Ninguém consegue incorporar diretamente uma análise das ações que mais fortemente determinaram o sucesso de Genghis Khan, Alexandre o Grande, ou Júlio Cesar, apenas para mencionar três entre os líderes mais poderosos de todos os tempos. Isso implicaria princípios como cumprir poucos acordos e matar indiscriminadamente todos aqueles que entrarem no caminho.

A solução para se espelhar neles, no anseio de também ter um império, passa pela identificação e modelagem cognitivo-comportamental dos traços psicológicos que compartilham, diriam os entusiastas. E isso precisa incluir Gandhi, que aparece em muitas listas como o líder mais influente do século XX (https://bit.ly/2EIFKjG).

O problema é que não há nenhum. A liderança enquanto agrupamento de traços psicológicos e comportamentais é uma das grandes falácias da modernidade.

Tal não deveria soar surpreendente. O fato de termos dezenas de modelos de liderança é indicativo da inexistência desse conjunto de traços, cuja presença indicaria habilidade para angariar seguidores, na linha que a noção de atributo preconiza.

É mais ou menos como se dá em relação à criatividade. É fácil identificar sujeitos criativos. Mozart, Einstein, Seinfeld. Mas ao tentarmos encapsular o aroma dessa manifestação comum, somos forçados a admitir que aquilo que os une é o fato de serem criativos de maneiras absolutamente distintas; é, justamente, a habilidade de desafiarem tudo o que se entendia por criatividade até ali e de permanecerem sem paralelos.

A despeito disso tudo, fato é que há um manual comum de liderança sendo compartilhado na vasta maioria das empresas. Ao longo do tempo, este foi adquirindo crescente poder de síntese, até culminar na definição canônica: o líder é um Alfa.

Essa ideia tem profundo significado. Alfa é o animal que lidera o bando; em geral, é um macho, cuja exposição fetal à testosterona circundante garantiu-lhe níveis elevados de agressividade e abundantes traços sexuais secundários, voz grave, olhar de predador. É, enfim, a representação zoológica de que disputas e sucessos devem ser compreendidos por prismas evolucionários. Gosto.

Consideremos a voz. É notável como executivos e executivas vão baixando o tom médio de suas vozes conforme sobem na escala corporativa, mais ou menos como um leão. Não conheço CEO, CTO ou CFO de empresa listada, que não pareça formado nessa escola de barítonos profundos e intimidantes.

Agora, olha que engraçado, Steve Jobs, o Alfa de todos os Alfas, tinha voz fina (https://bit.ly/2VEj3FI). Não só a voz, ele não tinha nenhum desses traços secundários saltando de seu peito peludo, nem olhar de predador.

É claro que podemos considerar que seja um outlier, ou que se adeque melhor a uma outra forma de liderança, junto com Gandhi e Madre Teresa de Calcutá, para ficarmos entre os top of mind. Estes, afinal, são líderes carismáticos, cuja força vêm do fato de serem gente como a gente.

Espera, Steve Jobs? Amplamente considerado um dos caras mais insuportavelmente geniosos a pisar a Califórnia, desde que esta deixou o México? Difícil comprar essa.

Assim podemos ir indefinidamente, encontrando aqui e ali modelos de liderança que se encaixam para uns mas não para outros, mais ou menos como quando procurávamos agrupar nuvens temáticas, no banco detrás do carro.

Se esse argumento não fosse forte o suficiente, teríamos ainda que lidar com uma esquisitice mais profunda, para engolir essa de liderança como expressão de atributos cognitivos-comportamentais: se de fato existisse, seria a única combinação do tipo gerando alocação eficiente no plano do comportamento, entre todas as que foram descritas até hoje.

Consideremos um exemplo: senso de oportunidade. Pessoas com altas doses deste senso têm um blend de capacidades relacionadas à avaliação de custo/benefício, geração de valor, criatividade e assim por diante.

Com isso em mente, lembro da Luzia, pobre e não escolarizada, moradora da banda excluída pelo São Francisco transposto, cujo alto senso de oportunidade garante que sobreviva e mantenha sua família, dia após dia. Nenhuma mina de diamante descoberta, nenhuma solução para a falta de saneamento ou microcrédito. Apenas senso de oportunidade garantindo a sobrevivência no Brasil profundo.

Façamos um paralelo com o Paulinho carioca, também pobre e não escolarizado, cujo alto grau de liderança garantiu sua promoção ao papel de chefe, na equipe da faxina.

Sério? Será mesmo que alguém de fora desse grupo atribui-lhe alta liderança?

Será que algum CEO verdadeiramente considera algum gerente um líder?

Será que algum presidente do conselho jamais confessou à esposa: queria mesmo era ter o espírito de liderança do Ramos, que um ano atrás era estagiário e agora já é analista sênior da contabilidade.

A resposta é óbvia e externaliza um absurdo: se liderança fosse esse conjunto de atributos, teríamos que considerar que se expressa em perfeita consonância com as cadeias de poder, como que por uma força divina.

Seria tipo um Olimpo, em que Zeus têm os poderes mais tops e por isso lidera.

Essa ideia nos forçaria a assumir também que os adolescentes mais populares são os mais legais, os músicos mais bem pagos são os melhores e os presidentes e senadores são as pessoas mais capazes da política de cada país.

Não fosse o caso de aceitar dogmaticamente o disparate, poderíamos rapidamente fazer justiça, reverenciando a grande liderança dos pequenos líderes. Quem começa? Acho então que podemos virar essa página e considerar que liderança é aquilo que procuramos inferir em quem lidera algo que consideramos relevante. A isso também podermos adicionar que a própria relatividade do conceito é, em grande parte, derivada das diferenças de opinião sobre o que importa liderar.

Isso não quer dizer que não possamos falar em denominador comum relacionado à pessoa, para nos referirmos a parte das lideranças. Muito pelo contrário, essa visão menos idealista justamente nos permite avançar no problema, começando pelo fato de que a coisa está obrigatoriamente fora do domínio das competências objetiváveis.

Na minha opinião, tal denominador pode ser adequadamente chamado de capacidade de maximização utilitária. Ele tem muito a ver com a força selvagem que responde a pressões evolucionárias, tal como na alegoria andrógena do culto ao leão, só que com uma diferença. A gente não é rena, macaco ou rinoceronte; nem tão pouco estamos expostos às condições do pleistoceno, da idade da pedra. O plano adaptativo é o da vida atual, contextualizada pelo recorte socioeconômico em que cada um se insere.

Quando o contexto é exuberante, a pessoa mostra-se capaz de mobilizar vasta quantidade de recursos em sentido a seus interesses pessoais ou grupais e o acaso joga a seu favor, torna-se um grande líder – ou, simplesmente, líder, já que aqui os pequenos não têm vez, como assinalado. Isso pode ser feito de diversas maneiras e, não, você não vai aprender a chegar lá, conforme conseguir mimetizar o estilo de outrem pensar.

Quando o contexto é pobre em recursos materiais, intelectuais ou humanos e a sorte não ajuda, o quase líder ganha um prêmio de consolação, tornando-se personalidade de destaque, sujeito notável ou, no plano dos modelos carismáticos, um fofo.

Seja qual for o contexto, a competitividade dará a medida do esforço necessário para chegar lá. Uma das poucas recorrências envolve um espartano adiamento de recompensas menores e mais imediatas, com via à obtenção das maiores e mais distantes. De resto, não há muito o que dizer em termos de ações específicas: a capacidade de maximização utilitária é como uma mutação: só depois de expressa é que a gente consegue descrever, aquilo que faz naquele corpo específico. Que, especialmente depois morto, a gente pinta de dourado e te vende como ideal atingível.

 

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