Coluna Álvaro Machado Dias na Folha de São Paulo

Como formular perguntas mais importantes e se guiar pela busca de respostas

Uma boa meta para 2023 é tentar não sermos engolfados pela algoritmização do pensamento que dá o tom à vida digital/social de nossos dias.

Como formular perguntas mais importantes e se guiar pela busca de respostas

Virada de ano, momento de criar algumas metas para não serem cumpridas. Mas, se você estiver em busca de alguma para levar a sério, aqui vai minha sugestão: investir em perguntas melhores e, claro, em algumas respostas forjadas no mesmo espírito.

Sei que é uma meta que não emagrece, nem enche a carteira, mas ela pode reverter inclinações intelectuais que andam nos fazendo bem mal, o que não é pouca coisa.

Há alguns anos, as rodas de conversas passaram a incorporar a checagem de fatos em tempo real. Os primeiros a sacar o celular do bolso e dar uma busca pela resposta definitiva ao que quer que seja fizeram-no de maneira acanhada, para não estragar a graça alheia. Porém, não tardou para o embaraço dar lugar ao hábito, sob o princípio de que verdade é aquilo que parece ser, em 30 segundos, na tela do celular.

Isso foi na época em que a credibilidade das redes sociais atingiu seu apogeu, as lojas de ruas começaram a se transformar em vitrines dos e-commerces e os jornais a enfrentar prognósticos sombrios, como os que se seguiram à aquisição do Washington Post por Jeff Bezos (2013).

Quatro anos depois (2017), fake news foi eleita a expressão do ano e o entusiasmo com o consumidor-criador se transformou em profundo desassossego.

Hoje, a tendência a tratar a internet como oráculo de bolso é tida como uma das mais desafiadoras dimensões da tempestade global de desinformação, que teve seu primeiro boom na campanha eleitoral americana de 2016 e seu momento de glória durante a pandemia, quando ajudou a asfixiar multidões.

A ideia de que para tudo basta dar um Google ou pesquisar no TikTok contaminou os questionamentos que fazemos uns aos outros e aqueles que dirigimos a nós mesmos, do mesmo modo como figurinhas do WhatsApp criaram novas dinâmicas familiares e a algoritmização sexual do Tinder passou a dar o tom às transas dos solteiros, mesmo entre os que sequer usam o aplicativo. A meta proposta é para virar essa mesa.

Mas, afinal, como elaborar indagações que sirvam de guia para aquilo que, por definição, não é indexável? Como ser cada vez mais livre, em um mundo cada vez mais algoritmizado?

PRINCÍPIOS PARA PERGUNTAS MELHORES

Três práticas intelectuais interligadas podem ajudar a realizar a meta de 2023: priorização de perguntas abertas, remoção de a prioris e identificação de dissonâncias.

Priorização de perguntas abertas

O que caracteriza a algoritmização do pensamento é a sua redução a uma sequência de interações do tipo estímulo-resposta com as memórias e fontes externas de informação.

Perguntas abertas, por sua vez, tendem a ser arredias a encaixes precisos, o que faz com que se ramifiquem pela vida mental de quem as cultiva, em contraste com a lógica de questionários que guia o pensamento moldado pela relação com algoritmos.

Como apontou o pesquisador Arash Emamzadeh, “fazer muitas perguntas em um intervalo exíguo sinaliza preferência por respostas curtas e menos detalhadas”. O uso de estratégias alternativas a esta mentalidade é central à meta que estou divulgando, ainda sem patrocínio.

Perguntas abertas são chave nas relações interpessoais. “Em nossa vida social ou profissional, trocar informações é crucial, e perguntas objetivas representam um dos meios mais eficientes para tanto. No entanto, quando as perguntas são muito diretas, as pessoas podem se tornar reticentes, omitindo informações, declinando de responder, mentindo ou se desviando do assunto”, escreveram os pesquisadores Maurice E. Schweitzer e T. Bradford Bitterly ( 2020, p. 966).

Além de aumentarem a franqueza, as perguntas abertas retomam a ideia de que pessoas podem ter preferências convergentes e serem existencialmente divergentes e vice e versa. Elas são o oposto do match, que é a lógica das bolhas e, assim, da polarização.

A busca de respostas para as perguntas abertas corre na contramão do imediatismo digital, que alimenta a sensação de dependência informacional e as chances de manipulação. Tais circunvoluções do pensamento expõem a impossibilidade da verdade absoluta, aproximando-nos, quanto possível, de sua essência.

Tudo o que esta parte da meta 2023 preconiza é a retomada do hábito de elaborar perguntas sem respostas definidas e deixar o pensamento fluir sem muita pressa, usando os hiperlinks que nossas mentes disponibilizam, quando os axônios das memórias afetivas vão dar com os do raciocínio e os da imaginação. Acredito que você possa criar as suas, mas, por desencargo de consciência, aqui vai uma referência para ajudar.

Remoção de a prioris

A segunda parte da meta não envolve a aplicação de um princípio, mas a sua inibição.

Quando nos aproximamos de uma noção ou de alguém, as condições necessárias para que a interação possa ser significativa parece que brotam de áreas distantes do cérebro. De certo modo, isso é verdade.

As áreas que armazenam as memórias relevantes são pré-ativadas e o cérebro passa a gerar interpretações preliminares da situação, dos seus aspectos mais gerais para os mais específicos e ao contrário. Assim são criadas as condições para o entendimento rápido da realidade, o qual é quase milagroso.

O problema é que isso nos leva a injetar entendimentos inadvertidos por onde passamos. Ao ouvirmos a descrição de um conflito, tendemos a perguntar: “ele estava com muita raiva?”, ao invés de “como você acha que ele estava se sentindo?”; frente a alguém que se machucou, a querer saber imediatamente se “está doendo muito” e assim por diante. A contaminação das perguntas com prerrogativas inibe a geração de respostas genuínas.

“A maneira como a pergunta é feita traz informação sobre a resposta esperada. Isso inclui perguntas que apontam numa direção específica e outras, que dão pistas sobre qual seria a resposta correta. Em ambos os casos, as crenças do respondente podem ser suprimidas” (escreveram VanEpps e Hart, 2022, p. 02).

A mesma coisa acontece quando colocamos as nossas próprias atitudes sob escrutínio. Se pudéssemos tirar raios-x do pensamento, veríamos que uma parcela enorme da população passa o dia ruminando sobre o passado ou o futuro, tendo por base perguntas que não podem ser respondidas e, assim, retornam à consciência de modo incessante.

Por que não tenho coragem para enfrentar essa barra? Por que sou assim? Por que essas coisas só acontecem comigo? O que há de errado comigo? Essa é uma forma clássica de autoflagelamento, que usa perguntas no lugar de chicotadas. Dói mais.

A inibição de a prioris é necessária para se inquerir as motivações específicas que insuflam as outras pessoas e as razões por trás das coisas que acontecem conosco.

Ela tem papel profilático, evitando que unhadas inadvertidas abram mais as feridas dos outros e aquela que produzimos em nós mesmos. Sem exagero, é a principal medida para quem busca um pouco mais de inteligência emocional. Eis aí o seu grande mérito.

Identificação de dissonâncias

Cultivar perguntas abertas e um gosto por suas respostas sempre provisórias, forjadas em silêncio ou em conjunto, é uma perspectiva mais poética do que programática.

A ideia de remover a prioris refina este quadro, apontando para ganhos relacionais, intelectuais e afetivos precisos, mas a sua alçada está restrita ao negativo das coisas, aos limites à transformação estabelecidos pelo não fazer.

Com um pouco mais de esforço, dá para levar a ourivesaria das perquirições valiosas bem mais longe, pela identificação das conjunturas que as estimulam propositivamente. Esta é a última dimensão da meta, a única que depende de um método de reconhecimento das perguntas de alto potencial.

Considere a taça que forma dois rostos em seu contorno (vaso de Rubin); percebe como os padrões são ricos e isto depende de cada pixel relacionado? Reflexões impactantes costumam ter caráter análogo. Elas inspiram insights concatenados, com alto nível de organização e baixo de redundância. Nelas, cada pequeno trecho de representação mental amplifica e é amplificado pelo todo.

As grandes ideias, incluindo as teorias mais sofisticadas, dão a impressão inicial de que vão se esgotar rapidamente; mas, conforme a gente entra de cabeça, passam a se desdobrar em consequências obrigatórias e totalmente novas.

Isso vai aumentando o nosso envolvimento e mesmo instigando a proposição de adendos, que ultrapassam o escopo do original. Umberto Eco explica muito bem esta dinâmica e ressalva que é preciso saber reconhecer as concepções sem nexo e mesmo alucinações surgidas assim.

Perguntas poderosas são aquelas que favorecem o surgimento desses trens de pensamento bem concatenados que, pelos excessos, convertem-se em alucinações. Ou seja, sua importância não é inerente, mas determinada pelos desenlaces que estimulam.

Existem diferentes estratégias para encontrá-las. A que mais me agrada adota a identificação preliminar do que é dissonante ou antitético, como em “por que X está acontecendo se, dentro dessas circunstâncias, o esperado seria Y?” —funciona bem em termos autobiográficos, assim como na geração de indagações sobre a realidade compartilhada, mas dá ainda mais certo quando essas duas conjunturas convergem.

Por exemplo, há pouco mais de dez anos, sofri um sequestro relâmpago, que evoluiu para uma situação especialmente tensa. Fiquei com um revólver servindo-me de fivela, enquanto dois dos bandidos discutiam se me matariam.

Lembro-me de que eu dizia “besteira; matar faz a maior zona, barulho, melhor desencanar”. Passada a situação, foi como se nada tivesse acontecido. Não fiquei paranoico com segurança, nem tive pesadelos violentos.

Alguns anos à frente, vivi uma nova situação de tensão, a qual me fez somatizar umas coisas esquisitas. Achei que iria morrer; entrei em pânico com essa possibilidade. Aí está a dissonância: como uma pessoa que não tem medo da morte em alguns contextos pode ter tanto medo dela em outros, sendo a morte uma só?

Percebe como a indagação parece clamar por uma explicação particular e universal, para a qual a medida da verdade é o que dá liga internamente e, ao mesmo tempo, possui valor independente? Percebe como dá aquela sensação de que se pode falar muito sobre isso, sem rodeios ou redundâncias?

Este não é um caso isolado. Dissonâncias inspiram questionamentos que produzem insights concatenados, sendo que muitos deles são universalmente particulares e particularmente universais. É claro que isso nem sempre funciona.

O segredo, contraintuitivo, é buscar os que perpassam os registros biográficos mais idiossincráticos ou os aspectos da realidade compartilhada que parecem não interessar a mais ninguém. Se você fizer isso por um tempo, irá notar como são comuns as correlações.

É curioso, mas as nossas contradições internas não costumam se contradizer. O mesmo vale para aquelas que enxergamos no mundo. Questioná-las abertamente, sem o peso de muitos a prioris, pode levar à sua dissolução em série.

Acho que essa dissolução dá uma boa meta para o resto da década. Feliz 2023!

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