Coluna Álvaro Machado Dias na Folha de São Paulo

Por que pessoas aparentemente normais cometem crimes políticos horríveis?

Conteúdo mental que precede assassinatos ajuda a entender casos de assassinato político.

Por que pessoas aparentemente normais cometem crimes políticos horríveis?

O que altura, temperatura corporal e inteligência têm em comum que a riqueza não tem? Além de serem inerentes e não sobressalentes, aquelas se distribuem pela população como uma gaussiana (curva do sino), enquanto esta não.

A relação não é casual: características constitutivas e padrões comportamentais tendem a irradiar de forma contínua e a ter maior representatividade em torno da média.

O comportamento agressivo é assim, o que parece levar às hipóteses de que os homicidas são as pessoas mais agressivas que existem e os assassinatos que não encontram ecos no crime organizado nem visam a obtenção de vantagens pessoais representem o pináculo da violência física, que é a sua forma mais extrema.

Entre os assuntos mais complexos e sensíveis da atualidade estão os assassinatos politicamente motivados. Estes vêm sendo abordados de maneira praticamente unânime pelo ponto de vista da escalada da violência interpessoal, que anda deixando as pessoas com medo de serem agredidas fisicamente. A tese é que o ódio político que tomou conta baixe o limiar à ação dos sujeitos mais agressivos, que então descarregam sua fúria transtornada sobre o outro até levá-lo a óbito.

Isso é verdade em alguns casos, mas não em todos. Em consonância com a existência de um sem-fim de homicídios por motivos aparentemente fúteis, perpetrados por pessoas sem histórico de violência, é importante considerar que nem todos os assassinos são facilmente cegados pela agressividade e sentimentos associados; e nem todos os assassinatos políticos são primariamente motivados pela externalização desses sentimentos opositivos.

David Buss conduziu uma ampla pesquisa científica (N > 5.000), na qual constatou que cerca de 90% dos homens já cogitaram matar alguém, o que evidentemente não aconteceu na vasta maioria dos casos. A leitura correta desse resultado, que me parece um pouco inflado por questões metodológicas, é considerar que uma parte menor dos participantes pensou muito vagamente no assunto ou o fez com total seriedade, ao passo que a maioria criou um modelo mental, mas o abandonou em seguida.

Outro aspecto interessante diz respeito à premeditação: é mais comum o sujeito pensar em matar outra pessoa enquanto está sozinho que no calor do momento.

Já o perfil de quem efetivamente mata é bastante homogêneo. Noventa e cinco por cento de todos os assassinatos são cometidos por homens jovens, sendo que o assassinato de outro homem —geralmente alguém pouco íntimo— é quatro vezes mais comum do que o feminicídio.

Segundo o autor, a alta prevalência da ideação homicida estabelece uma ponte direta com o nosso passado evolucionário, no qual a morte de outros homens era prática corrente, dado o seu papel instrumental na resolução de conflitos sexuais e na estabilização das hierarquias de poder. O assassinato masculino teria um histórico funcional cujos ecos ainda estariam entre nós.

Vasta quantidade de evidências mostra que essa visão da vida no Pleistoceno (referência de Buss), moldada pela lógica do chimpanzé, está fundamentalmente errada. Aliás, essa visão está errada até em relação ao próprio chimpanzé e outros primatas, como mostrou o primatólogo Frans de Waal.

Porém, é apropriado considerar a questão da ideação antes de atribuir o homicídio a uma espécie de transe emocional, impulsionado pelo contexto mais amplo. Minha tese é que o cerne da diferença entre os crimes movidos pela narrativa subjacente (ideação) e os que não o são esteja na natureza dos processos inibitórios que falham nos dois casos.

Conflitos masculinos tendem a escalar rapidamente. O assassinato, contudo, é um desfecho relativamente raro, que tende a ocorrer pelo uso desenfreado de artifícios originalmente orientados para lesar, provocando dor e não morte, a qual a extingue imediatamente. A falha inibitória dos que matam assim recai diretamente sobre a ação. O crime é intencional, mas a intencionalidade abre-se de maneira frágil à consciência —e a morte lembra o estrago irremediável feito por um animal feroz.

Do outro lado, está o homicídio com uma narrativa de fundo: é um clássico da cultura, desde o tempo em que Abel era vivo. Uma de suas marcas é a economia de gestos: um tiro, algumas facadas na vítima desprevenida e coisas do gênero. Outra é a temporalização intencional, isso é, a convivência do sujeito com a intenção de matar outra pessoa, enquanto essa ganha substância, o que, em algum grau, também se aplica à noção de que o ato pode trazer severas consequências.

O sujeito que vai às vias de fato desse modo é o ponto em cima da linha naqueles 90% da pesquisa de Buss. Ele é muito mais parecido conosco que o assassino puramente feroz, o que faz com que cause mais medo e perplexidade.

Sua falha inibitória está na relação entre intenção representada e ação. Aqui, o ato de matar o outro não é retroalimentado pela violência física, mas pelo conteúdo mental antecedente.

Assim chegamos à questão mais importante de todas: que narrativa poderosa é essa?

JORGE GUARANHO VS. RAFAEL DE OLIVEIRA

Jorge Guaranho era policial penal federal. Passou, com a mulher e filho, pela comemoração de aniversário de Marcelo Arruda, cuja temática era lulista, e discutiu com os participantes. Deu meia volta, deixou a família em casa e voltou à sede da festa, atirando. O saldo da tragédia ocorrida em Foz do Iguaçu em julho é de conhecimento geral.

Conforme o UOL noticiou, o policial penal federal havia se envolvido em duas confusões anteriores, em menos de dois anos. Na primeira, insultou policiais militares durante uma abordagem e terminou algemado; na segunda, criou conflito em uma boate. Jorge Guaranho, enfim, não é nenhum Gandhi. Porém, não há indícios de que seja uma pessoa severamente perturbada.

Rafael de Oliveira era trabalhador rural. Ele discutiu com Benedito Cardoso dos Santos e o assassinou a facadas em uma fábrica de cerâmica da cidade de Confresa (MT) no último 8 de setembro. Conforme alega, eles trocaram socos e foi a vítima que originalmente tentou apunhalá-lo. Impossível saber os detalhes, mas o fato de ele ter desferido 15 facadas recomenda ceticismo.

Rafael já respondia pelo crime de latrocínio, relativo a um assalto com faca, no qual a vítima conseguiu tomar sua arma, e havia sido preso por falsificação de documentos. Conforme reportado pelo Olhar Jurídico, a irmã dele havia requerido internação compulsória com urgência, junto ao estado de Mato Grosso, mas o juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública de Várzea Grande, que julgou o caso, indeferiu o pedido. Segundo ela, Rafael apresentava quadro psicótico grave e pensamentos homicidas recorrentes.

Para além das convergências de sempre —homens matando homens, dos quais não são próximos, em espaços abertos à circulação de pessoas— há convergência entre as causas precipitantes: retaliar o colega eleitor da oposição. Em um contexto polarizado como o nosso, em que Bolsonaro age deliberadamente para elevar os ânimos, é o que chama atenção.

Porém, abaixo da superfície, as diferenças se destacam. Tivessem as coisas caminhado de outra maneira, Jorge poderia ser o carcereiro de Rafael, recluso em um presídio federal por causa do latrocínio que cometeu.

O alinhamento ao poder estatal é apenas um elemento de diferenciação. Jorge é parte de uma categoria profissional tradicionalmente mais alinhada às bandeiras do presidente, é mais velho (50 x 24 anos) e também mais abastado que Rafael, o que vai na mesma direção.

O boletim de ocorrência lavrado indica que a investida inicial de Jorge foi contra a festa, que ocorria na sede da Associação Esportiva Saúde Física Itaipu, e não apenas contra Marcelo. Essa conclusão decorre do fato de que ele não conhecia ninguém e chegou gritando “aqui é Bolsonaro”, tal como se tivesse em uma espécie de batida policial contra os bandidos do PT.

O laudo pericial indica que Marcelo jogou terra em Jorge (sujidades foram encontradas em seu carro), o que possivelmente contribuiu para a escalada conflitiva, sem alterar seus aspectos essenciais, já que esse gesto teve, sobretudo, sentido moral.

Ao que tudo indica, o mote do conflito foi predominantemente institucional; foi o “nós contra eles”, comum ao esporte, às religiões e a demais grupos organizados (por exemplo, policiais federais vs. municipais, o que é reforçado pelas diferenças de status existentes).

O vídeo da primeira interação entre eles reforça isso: após Marcelo sair da festa e jogar terra no outro, sua mulher avançou em direção ao carro tirar satisfação, secundada por outros convidados. Segundo uma testemunha, antes de sair acelerando, Jorge disse que iria voltar para matar a todos.

Enquanto elaborava essa intenção, o policial penal federal deixou a família na porta de casa e, de fato, retornou. Isso lhe tomou quinze minutos, tempo suficiente para que pudesse evitar ser o ponto em cima da linha na gaussiana de David Buss, mediante juras sinceras para “a próxima vez que esse povo aparecer por aqui”.

Será que existe explicação plausível para esse crime, em termos estritamente reativos ou emocionais? Assumir essa hipótese implica considerar que Jorge permaneceu cegado de raiva pelos mais de 15 minutos em que esteve sem interação direta com seus desafetos e que isso o levou a ignorar tudo o que poderia vir a seguir. Um carcereiro ignorando a cadeia quase certa.

Não acredito que explique completamente a motivação criminal, ainda que ajude a descrever o que ocorria na superfície. Creio que seja necessário caracterizar a falha inibitória que se manifestou na conversão da intenção de matar (comum) em assassinato público (incomum), do ponto de vista do que foi afirmado e não apenas do que foi rechaçado. Mais eu, menos eles.

A tragédia foi protagonizada por uma narrativa mental poderosa, e o elemento capaz de fechar essa conta é o senso do assassino de estar agindo em nome do bem comum ou, mais especificamente, de uma versão ainda frágil desse, que por isso precisa ser defendida. Essa compreensão moralizante, por sua vez, remete-se a um grupo de pessoas supostamente esclarecidas que a reconhecem e a um líder que a encampa como ninguém.

A incorporação dessa lógica, desapegada da realidade a ponto de parecer uma alucinação, faz com que as projeções sobre o retorno esperado da ação desprendam-se do eu e um senso de missão quase impossível passe a dar o tom ao comportamento.

É o mito do herói, de natureza altruísta, que se torna urgente pela sensação de que será substanciado pelo salvamento da vítima de uma grande injustiça —uma figura masculina de poder, invariavelmente, o que amarra essa lógica toda à fantasia de resgate do pai, típica da infância masculina. Charles Bronson explica.

O heroísmo simplório enche o sujeito de orgulho, enquanto a fantasia subjacente lhe imbui de verdadeiro sentimento de potência, ofuscando a percepção do horror que ganha contornos pelos seus gestos. Ou seja, o vetor mais profundo não é o sentimento opositivo, mas uma espécie de manobra psíquica capaz de transferir as funções utilitárias que caracterizam o pensamento individual para a esfera desse outro, tal como o fã que vê chegar o dia em que finalmente pode realizar a suprema fantasia de salvar o seu ídolo de uma ameaça fundamental.

Essa é a lógica ilógica, que confere protagonismo trágico ao eu, não a despeito, mas justamente em função das consequências terríveis que antecipa.

O caso de Rafael é diferente. Sai de cena a contraposição identitária (o autor e sua família vs. os convidados da festa; policiais federais vs. guardas municipais) e entra o conflito interpessoal típico. Não há tanta distinção entre a fase verbal e a física; tudo é muito mais rápido. A temporalização intencional dá lugar à violência escalar, da troca de socos às facadas.

Essas conjunturas, em consonância com as ideações homicidas, organizadas de maneira psicótica e reportadas por sua irmã, tornam as considerações sobre o retorno esperado do assassinato secundárias frente à relevância da cegueira emocional. É nesse espírito que Rafael deve ter desferido as machadadas no pescoço desfalecido de Benedito Cardoso dos Santos.

Ambos são crimes de natureza política, porém as distinções sugerem que deveríamos ampliar nosso entendimento do que isso significa. Em um caso, o assassinato é em si um ato político, enquanto, no outro, a política aparece mais como gatilho.

Do mesmo modo, ambos são crimes de ódio. Porém, em um caso, uma espécie de altruísmo às avessas embala a ação, enquanto, no outro, são os sentimentos de raiva e ira que o fazem.

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