O Globo

Até que ponto o extremismo digital pode aparecer na vida real? Neurocientista Álvaro Machado Dias explica

Em entrevista, especialista e professor da Unifesp discute também o efeito da vida na internet sobre as intenções de voto.

Os números de popularidade digital, comentários em chats ao vivo no YouTube ou interações no Twitter, Facebook, Instagram, TikTok, entre outras redes costumam impressionar quem busca respostas sobre o impacto de um político na internet e os votos que ele terá em uma eleição. O Pulso conversou com o neurocientista e professor da Unifesp Álvaro Machado Dias, do Instituto Locomotiva, para aprofundar a discussão, na opinião pública, sobre a diferença entre o comportamento online e offline.

Qual é a relação entre comportamento digital e o presencial?

Em geral, falamos sobre essa distinção pensando no criador de conteúdo: na internet, especialmente nas redes sociais, as pessoas são mais extrovertidas e parecem muito mais inspiradas e apaixonadas pelo que fazem e vivem do que no mundo offline. Em suma, a internet nos faz superficiais. Acontece que os aspectos mais determinantes do comportamento digital para o funcionamento da sociedade têm menos a ver com quem cria do que com quem consome. Tudo gira em torno do fato de que as reações digitais são mais extremadas do que as do mundo físico. Nada reflete melhor isso do que o fato de o YouTube, seguido por todas as outras redes e streamings, ter substituído seus sistemas de classificação baseados em estrelas por polegar para cima ou para baixo. O ponto motivador foi que quase todas as respostas recaíam em uma ou cinco estrelas, tornando as outras opções pouco relevantes.

Por que as reações digitais são mais extremadas do que as físicas?

De um lado, a tela serve de anteparo preservando a integridade do corpo. Logo, ela pode ser intensificada, sem maiores riscos pessoais e sociais. Cachorros parecem entender bem isso, como sugere um vídeo que ficou famoso na internet (assista abaixo)…

… De outro lado, o extremismo digital ocorre porque a disposição para superar a passividade que caracteriza o consumo de mídia, em prol da disposição para retribuir com um feedback, só acontece quando o conteúdo desperta emoções intensas, positivas ou negativas, tal como a mudança no sistema de classificação das plataformas (de estrelas para polegares) indica. A consequência desse raciocínio é que as redes sociais não são polarizadas de maneira apenas conjuntural; elas o são by design, intencionais, antes mesmo de os algoritmos de recomendação entrarem em cena. Como a vida digital tornou-se tão importante quanto a offline, vivemos parte substancial de nossas existências imersos num sistema que favorece a polarização. Essa é a minha tese.

Qual é a relação entre a influência digital de um político e sua estratégia de comunicação?

O fato de que as redes sociais favorecem de forma intrínseca a polarização faz com que políticos com discursos emocionais tenham mais engajamento, em detrimento daqueles que, por exemplo, produzam mais debates ou reflexões. No meu ponto de vista, isso dá origem a uma fórmula: Influência digital = populismo digital – M. No caso, M representa a “multa” que o político toma das plataformas quando excede o grau de tolerância aceitável e assim tem seus conteúdos derrubados, seu alcance restringido ou, como no caso de (Donald) Trump, é permanentemente banido de algumas plataformas. Assim, a influência será uma função direta do quão populista e apelativo é o político, subtraída pelo quanto seu alcance é limitado justamente por isso.

Índices de influência digital podem prever desempenho nas urnas?

Influência digital = populismo digital – M, evidentemente, não é a fórmula do desempenho nas urnas, que é dependente de um sem-número de fatores, incluindo a conjuntura econômica. Mas existem relações entre elas, tanto do ponto de vista causal, quanto associativo. Do ponto de vista causal, é sabido que a popularidade digital contribui de maneira importante, porém não necessariamente decisiva, para o desempenho nas urnas. Do ponto de vista associativo, a correlação estabelecida tende a ser mais forte em alguns países e pleitos do que outros, jamais sendo desprezível. Kellygton Britto e Paulo Jorge Adeodato, da UFPE, acabaram de publicar um estudo estatístico sobre isso, cobrindo eleições ocorridas na América Latina nos últimos anos. De acordo com eles, “no cenário brasileiro, apesar de não haver correlação entre número de posts e votos, todas as outras variáveis apresentadas mostraram alguma correlação (…). De qualquer modo, um padrão claro não pode ser observado” (Brito e Aldeodato, 2022). Traduzindo, a despeito do artigo apresentar essas relações de maneira efusiva, os resultados encontrados, os quais incluem a eleição presidencial de 2018, não são tão claros assim.

Há diversas metodologias para pesquisar intenção de voto, com entrevistas presenciais, telefônicas e painéis digitais. E as do futuro? Quando a inteligência artificial começará a inferir votos em massa (e acertar)?

O aprendizado de máquina já vem sendo usado para criar simulações de cenários eleitorais sensíveis à economia, tempo de mídia e afins, os quais vêm puxando a acurácia, a despeito das zebras que sempre saltam aos olhos. Trata-se de um avanço considerável, que toma como elemento central as diferentes pesquisas que vão sendo publicadas: presenciais, telefônicas e mesmo digitais. A razão para isso transcende a discussão eleitoral. O ponto é que a interpelação da amostra é insubstituível para se estimar decisões presenciais de alta relevância. Se um dia passarmos a votar usando aplicativos, como já acontece pontualmente em diferentes partes do mundo, as estimativas baseadas em Big Data, coletado a partir do comportamento digital, ganharão maior precisão. Até lá, nada irá substituir as metodologias estabelecidas e seus enriquecimentos, como as neurociências, que nos permitem inferir intenções com mais precisão sobre decisões futuras, incluindo as eleitorais, do que os questionários sozinhos. Na atualidade, a busca por otimização está mais centrada na capacidade de inferir comportamento futuro em contato com as pessoas do que no despojo dessas como referência.

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