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Em meio a risco de privacidade, governo muda consulta sobre vacina infantil
O sistema de consultas públicas sobre a vacinação infantil contra a COVID-19 foi colocando no ar com vários problemas metodológicos, alguns dos quais graves a ponto de desqualificar por completo a iniciativa, conforme detalhado nesta entrevista.
Alguns dos pontos que desqualificam a consulta colocada no ar seguem aqui. Para mais informações, leia a entrevista completa.
Qual análise vc faz desse formulário do ministério da saúde?
Uma das grandes tendências da economia comportamental é o nudge, que podemos definir como as “facilitações tácitas”, que aumentam as chances de um comportamento. O assessment possui vários nudges. Por exemplo, a primeira pergunta “você concorda com a vacinação em crianças de 5 a 11 anos de forma não compulsória conforme propõe o Ministério da Saúde?” é uma pergunta sobre concordância com a discordância sobre a obrigatoriedade da vacinação infantil.
“Em contraste com isso, a vacinação é compulsória para poliomielite e uma série de patologias, o que é essencial para que se tornem novamente doenças frequentes em nossas crianças. Aliás, a aceitação do paradigma governamental iria contra o art. 14, § 1º, do ECA. Em termos simples e diretos, o ponto é que o Estatuto da Criança e Adolescente reza que, uma vez aprovadas as vacinas pelos órgãos competentes, as mesmas tornam-se de natureza obrigatória. Exigir termo de assentimento dos pais, criaria uma situação juridicamente nebulosa, além de um cenário de maior disparidade social, dificultando o acesso das crianças em condições sociais desfavoráveis à prevenção”, destaca o Dr. Bruno Filardi, da FMRP-USP.
Uma segunda pergunta capciosa segue à frente: “você concorda que o benefício da vacinação contra a COVID-19 para crianças de 5 a 11 anos deve ser analisado, caso a caso, sendo importante a apresentação do termo de assentimento dos pais ou responsáveis?”.
Na ordem em que os modelos mentais são construídos e a realidade se impõe, a pergunta deveria ser: “você acredita que apenas crianças portando termos de assentimento assinados por seus pais ou responsáveis devem ter acesso à vacina contra a COVID-19?”.
Pelo que notamos, dados não são validados, qual o problema disso?
É possível colocar qualquer número no campo CPF, nome com números, e-mail sem arroba e assim por diante. Isso indica que nenhum dos dados é validado online. Frente à situação, alguém poderia argumentar que a validação será feita a posteriori, mas, a grande verdade é que validação a posteriori não faz nenhum sentido prático, afinal, isso exigiria a filtragem os dados válidos de um conjunto enorme, composto por válidos e inválidos.
Este, para mim, é o ponto mais crítico dessa situação toda: a lição N1 da cartilha de construção de assessments diz que é fundamental conectar à base da receita federal para validar os CPFs (e outras para os outros dados). Eu custo a acreditar que isso tenha passado batido dos técnicos que construíram a ferramenta, até porque só depende de uma API que qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento de TI consegue implementar.
Em paralelo, vale notar que o caminho mais simples para fraudar o assessment é escolhendo a opção CNPJ e preenchendo qualquer coisa ali – afinal, o formulário não pede a identificação de quem está respondendo, mas apenas a do responsável legal pela empresa. A mera existência deste verdadeiro absurdo metodológico joga por terra a credibilidade de todas as respostas nesta categoria.
A conclusão que segue é que precisaremos de provas auditáveis de que as respostas contabilizadas passaram pelos filtros de validação a posteriori, bem como o descarte de todas as respostas do tipo “CNPJ”, para que possamos dar lastro à iniciativa.
Eu verdadeiramente espero que algo do gênero aconteça, mas concordo com o Dr. Filardi da USP de Ribeirão Preto, quando diz que “a consulta como um todo te jeito de ação anti-vacinal formal e deliberada, a qual arrisca vidas por razões meramente ideológicas”.
O formulário está suscetível a robôs. Pode comentar os riscos?
Todo formulário esta suscetível a robôs. A questão é de facilidade. Este aqui, que não possui captcha e permite a inclusão de qualquer dado nos campos checáveis, está suscetível a robôs que um aluno de primeiro ano de ciência da computação é capaz de construção num par de horas.
Na parte de baixo do formulário, tem uma mensagem da Microsoft que diz que “o dono deste
formulário não forneceu detalhes de privacidade e como usarão os dados. Não forneça informações pessoais ou dados sensíveis”. Você poderia dar sua percepção sobre como o formulário poderia ferir a LGPD por não informar como dados serão usados?
Aqui, a grande questão é que os respondentes não tiveram acesso a uma caixinha clicável, aliada a um texto dizendo algo como “eu autorizo que meus dados sejam usados para uma avaliação populacional do apoio à necessidade de autorização parental para a vacinação infantil contra a COVID-19, além de análises de segmentação e afins”. Isto seria fundamental porque há perguntas sobre o perfil do respondente, as quais só fazem sentido se algum tipo de análise de segmentação for feita.
Por exemplo, a partir de um estudo de segmentação, quem selecionou “profissional da saúde” irá entrar em estatísticas sobre o apoio dos profissionais da saúde à necessidade de autorização parental para a vacinação infantil contra a COVID-19, o que de forma alguma é claro no preenchimento, ferindo o princípio da transparência. Aliás, note que qualquer um pode se dizer “profissional da saúde”, o que permite que se fraude essa estatística com muita facilidade, invalidando-a como o resto.
Finalmente, há sim risco elevado de se ferir a LGPD, mas, sinceramente, perto de tudo isso que discutimos acima, é algo francamente secundário.