O Globo
Prisão de Jefferson mostra lado ‘fragilizado do bolsonarismo selvagem’, analisa neurocientista
Em entrevista ao Pulso, Álvaro Machado Dias expõe o choque simbólico provocado pelos ataques do ex-deputado contra policiais federais.
A uma semana do segundo turno, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), o aliado do candidato a presidente Jair Bolsonaro (PL) que cumpria prisão domiciliar, disparou tiros de fuzil e lançou granadas contra agentes da Polícia Federal que foram à sua casa, no interior do Rio, para cumprir ordem de prisão. A determinação foi do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, que apontou “repetidas violações” das medidas cautelares impostas, além de “ofensas abjetas” à ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista ao Pulso, o psicólogo e neurocientista Álvaro Machado Dias, professor da Unifesp e sócio do Instituto Locomotiva, analisa o perfil de Jefferson e os impactos mais amplos desse episódio na sociedade brasileira a dias da eleição.
Três dias depois do tiroteio e das granadas, quais são os significados desse episódio para a opinião pública?
O bolsonarismo é uma ideologia conservadora que se organiza em dois módulos psíquicos: um institucional, ligado à família, igrejas e forças repressivas; e outro personalista, ligado à noção de liberdade para se defender e se expressar, além da prerrogativa para estabelecer relações genuínas com Deus, colocando-as acima de tudo. A alegoria da liberdade de defesa mantém como subtexto a ideia de que o Estado é intrinsecamente perverso e arbitrário; a do direito de expressão é uma crítica ao politicamente correto e, com ele, à aceitação do diferente; e a das relações genuínas com Deus, não menos importante, é uma manifestação cifrada do rechaço ao Estado laico, que traz em seu bojo a desqualificação das religiões afro-brasileiras, rituais indígenas e qualquer outra manifestação espiritual ou religiosa que não siga o cânone cristão, especialmente, em sua matiz evangélica. Roberto Jefferson encarnou o espírito individualizante em seu ataque à PF. Sua referência é o Rambo, o herói republicano por definição. A grande questão é que isso se deu, precisamente, por meio de um choque com as forças policiais, que têm papel fundamental na estruturação do eixo psíquico institucional do bolsonarismo. Nesse choque, a falácia da liberdade do indivíduo para “tomar as rédeas da situação” não apenas se desfez na teatralidade farsesca, como revelou a sua barbárie.
Houve um curto-circuito no bolsonarismo, então?
Do lado oposto ao dos policiais federais com quem trocava tiros, Roberto Jefferson é o bolsonarismo selvagem finalmente enxergando a incompatibilidade insuperável que estabelece em relação a qualquer institucionalidade. Nesse sentido, a narrativa simbólica mais importante é a da exposição da incongruência da mistura entre a valorização do aparelho repressivo de Estado e o direito a se armar e fazer justiça com as próprias mãos.
Como os afetos dos eleitores são recrutados ao longo dessa história?
Um achado conhecido da neurociência mostra que o medo é mais presente na vida dos ultraconservadores, em consonância com o fato de que as áreas ligadas à sua manifestação, como a amígdala cerebral, tendem a ser hiperativas. Teorias da conspiração, sensação de que existe risco existencial às próximas gerações, pela via da deturpação dos costumes e crenças análogas não são fixadas apenas porque têm valor instrumental: a aderência acontece primeiramente na parcela mais vulnerável – e, muitas vezes, traumatizada – da população, que serve de pivô para a sua difusão. A predisposição ao medo é manipulada, isto então é embarcado em uma dinâmica que leva ao contágio. A questão a se considerar é que a ideia de resposta institucional ao medo é encorajadora, ao passo que a resposta individual, pretensamente corajosa, é apavorante. O fiasco de Jefferson externaliza esse pavor por meio da sua impotência. Uma vez que a violência mobilizada institucionalmente neutraliza a do sujeito que pega em armas, a fantasia do homem bolsonarista, capaz de defender a si e à sua família contra os bandidos do Estado e do mundo, é substituída pela percepção de sua inequívoca impotência. Essa valentia toda não passa de bravata. Esse papo de vou matar, vou triturar, vou bater sempre foi coisa de menino que tem medo de menina(o). Todo professor sabe disso.